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O Papel da Música na Reforma da Igreja

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Pr. João A. de Souza Filho
Pr. João A. de Souza Filho

Quando se fala em Reforma pensa-se logo em Martinho Lutero, e não é errado pensar assim. No entanto, é preciso entender que a reforma religiosa vinha sendo trabalhada pelos cristãos nos séculos anteriores.

Pouco se estuda sobre os Brethren ou Irmãos – eles só se chamavam assim – que nunca se corromperam com a igreja católica romana e que se refugiaram, devido às perseguições com a morte de Paulo nos altos vales do piemonte na Itália e Suíça. Os documentos que mostravam a vida e crença deles, bem como seus hinos foram metodicamente destruídos pela igreja romana, e o mais antigo que se tem data do ano 900 d. C.

No livro, The Pilgrim Church, de Broadbent, à p 98 diz: “Nunca se deixaram levar pela idolatria da igreja dominante e podiam ser encontrados nas montanhas Taurus e nos vales alpinos”. Aqueles irmãos possuíam seu próprio hinário que só foi oficialmente publicado depois da invenção da imprensa em 1538 na cidade de Ulm.

Pelo relato histórico que apresento a seguir, o leitor entenderá que os cânticos que entoamos em nossos cultos procedentes da Europa e dos Estados Unidos foram compostos a partir do estilo popular da época.

A igreja é detentora do maior acervo musical do mundo, e ela deveria ser a guardiã desta riqueza concedida aos seus fieis pelo poder e inspiração do Espírito Santo. A expressão, cada avivamento traz sua própria hinologia é bem verdadeira, pois ao examinar a história da hinódia cristã percebe-se uma renovação ou criação de novos cânticos sempre que um avivamento surgia. Lutero ficou conhecido como o “pai da hinódia protestante”, e dele foi dito que seus hinos contribuíram mais para a Reforma do que a tradução da Bíblia para o vernáculo alemão. Alguns historiadores alertam que não se deve esquecer de Ambrósio, considerado o pai da hinódia cristã, que criou os primeiros cânticos métricos, e que dele procedem a maior parte dos cânticos ainda existentes na liturgia católica e na protestante.

“Muitos Salmos foram escritos para serem usados em reuniões públicas de adoração […]. É de se registrar que o cântico da vitória escrito por Moisés e entoado por Miriam e seu pandeiro; o cântico de louvor de Débora, e o cântico de ações de graças de Ana – precursor do Magnificat de Maria – não foram incluídos na coleção conhecida como Salmos. O Bispo Perowne afirmou que nenhum outro livro das Escrituras, nem mesmo entre aqueles do Novo Testamento teve tanta influência entre os cristãos como o livro dos Salmos”.

“Calvino disse: As tristezas, dores, medos, dúvidas, esperança, cuidado e ansiedades, em resumo, toda a agitação que costuma tomar lugar no coração das pessoas […] o Espírito tem neles a representação da vida”.

 “A vida espiritual da igreja poderia ser escrita tendo como referência os Salmos. Muitos, nem todos, era usados no serviço do templo e nas sinagogas. Tornaram-se conhecidos na era apostólica pelas muitas referências a eles no Novo Testamento”.

“Ambrósio os utilizava em seus cultos em Milão; […] fizeram parte da Reforma de Lutero, de Calvino na Suíça e França; eram entoados no avivamento dos dias de João Wesley na Inglaterra e no grande avivamento da América” [1].

Numa época em que somente os ricos sabiam ler, poetas e salmistas criaram poesias e cânticos narrando epopeias bíblicas, contando históricas da vida cristã, o que era facilmente memorizado pelo povo. Lá pelo ano 680 d. C. o monge anglo saxônico Caedmon de Whitby preparou para o povo a história bíblica em versos que eram cantados pelos ingleses falando desde a criação à redenção do homem. Acredita-se que Bonifácio e outros missionários ingleses traduziram os cânticos para a língua alemã, formando quinze versos cada um deles com quatro linhas [2]. Não devemos esquecer que um dos mais antigos cânticos da história cristã é Kirye Eleison, um clamor entoado pelos irmãos do segundo século que enriquece a hinódia cristã.

Cerca de cem anos antes de Lutero, durante a peste negra (1348) os cristãos percorreram a Alemanha e outros países entoando cânticos de arrependimento em meio à peste e fome, em procissões com tochas, cruzes e bandeiras convocando o povo ao arrependimento. É bom lembrar que sempre antes de cada avivamento Deus convocou o povo ao arrependimento e à oração. Philip Schaff registrou aquele período com estas palavras:

“Os hinos se tornaram ao lado da Bíblia em alemão e dos grandes sermões uma poderosa arma evangelizadora, tratando do pecado e da necessidade da redenção. Os hinos eram usados em marchas e desfiles, impressos em folhetos e espalhados para a população cantar nas ruas, casas, escolas e igrejas. Lutero tem o mérito de dar ao povo alemão em sua própria língua a versão da Bíblia e o hinário […]. Ele mesmo era músico e compôs a melodia de vários de seus hinos. Ele é o Ambrósio da igreja alemã com suas poesias e músicas congregacionais. Escreveu trinta e sete cânticos, a maioria datada de 1524” [3].

Seu cântico mais conhecido é Castelo Forte baseado no Salmo 46 e surgiu num momento de grande tribulação no desastroso ano de 1527, sendo impresso pela primeira vez em 1528.

Lutero viu a necessidade de compor novos cânticos e salmos numa linguagem simples e acessível ao povo, diferentemente dos cânticos católicos romanos que apelavam para a adoração a Maria. Escrevendo para seus amigos em 1523 fez um apelo:

“Tenho planos […] de criar salmos no idioma alemão para o povo, portanto, estou à procura de poetas. Mas, meu desejo é que sejam em linguagens simples e comuns para que cada campesino entenda (o cântico) sem perder a beleza e a pureza poética”. Um ano depois escreveu: “Desejo, seguindo o exemplo dos profetas e dos pais da igreja fazer salmos populares, isto é, hinos sacros, para que a palavra de Deus cantada habite no meio do povo” [4]

Os hinos criados por Lutero foram feitos a partir de músicas bem populares, com melodias que na época eram fáceis de serem cantadas, inda que hoje nos pareçam difíceis de serem entoadas. Conforme Philip Schaff,

“mais de cem cânticos foram escritos naqueles tempos por Lutero e outros autores. Obviamente que muitas de suas músicas por serem de origem popular foram rejeitadas e desprezadas pelos religiosos da época. Lutero aparece como um dos primeiros compositores do início da Reforma e atribuem-se a ele cerca de trinta e sete cânticos. Claro, o mais conhecido é o cântico Castelo Forte, ainda cantado em muitas igrejas”.

Os cânticos de Lutero passaram a ser parte do uso comum nas igrejas e escolas levando o espírito da Reforma ao coração das pessoas. Hans Sachs de Nuremberg o saudou como o cavaleiro de Wittenberg. Um contemporâneo de Lutero Cyriacus Spangenberg, também um compositor de hinos escreveu no prefácio de “Cítara Lutheri” em 1569:

“De todos os principais cantores desde os dias apostólicos, Lutero é o melhor. Em seus hinos não se encontra uma palavra vã ou sem sentido. São de ritmos fáceis com palavras devidamente escolhidas, com sentido claro e inteligível; melodias que tocam o coração, em suma, uma raridade majestosa tão cheia de poder, desafiador e confortador […]” [5].

Logo depois da Reforma a Europa experimentou a guerra dos trinta anos. Um dos príncipes da hinódia alemã, Paul Gerhardt viveu neste triste período da história, e alguns dos cânticos que ele compôs fazem parte da hinódia da Inglaterra e dos Estados Unidos. Séculos depois João Wesley traduziu um dos seus cânticos para o inglês. 

Mas não é minha intenção fazer uma descrição histórica de cada compositor e de cada período, apenas acentuar que os avivamentos trazem como consequência, novos cânticos. Atribuem-se ao Conde Von Zinzendorf a composição de mais de duzentos hinos, muitos deles também traduzidos para o inglês por João Wesley. O Conde Zinzendorf cedeu parte de suas terras na Moravia aos Irmãos – conhecidos depois como moravianos – que séculos antes haviam sido expulsos de suas terras pela inquisição católica.

No lado calvinista da Reforma, tanto Calvino quanto Zwinglio iniciaram uma reforma da igreja abolindo as vestimentas sacerdotais, velas, incenso, óleos e rezas cantadas. A adoração calvinista era simples e objetiva. Lutero trouxe para a Reforma muito da liturgia católica porque era um monge, enquanto Calvino e Zwinglio nunca foram monges. E o paradoxo aqui é que Lutero, apesar de haver sido monge católico trouxe melodias populares da época para seus cânticos, enquanto Calvino, que dizem, não era apaixonado pela música, não se utilizou das melodias populares da França.

Carlos Wesley, irmão de João Wesley escreveu cerca de 6.500 cânticos. Os historiadores afirmam que ele tinha um cântico para cada ocasião. E por que tão rica hinódia naqueles anos? Porque o avivamento foi transformador na sociedade inglesa. Até hoje cantam-se os cânticos de Carlos Wesley. João Wesley dizia que o diabo não merece boas melodias, e usou de todos os recursos possíveis de sua época, inclusive encorajando os autores e poetas a comporem novos cânticos. Essas melodias e letras da música da época, muitas traduzidas para o português eram do tipo cantado entre o povo – como nossos pagodes e samba no Brasil e a salsa colombiana. Para nós, hoje, s músicas europeias parecem tão sacras, para o povo da época, populares demais, e por isso, rejeitadas pelo clero anglicano [6].

“Wesley buscou todos os tons disponíveis em sua época, e encorajava os amadores a escreverem cânticos que resultaram no grande avivamento da época […]; eram melodias no estilo popular, cânticos caipiras e foram especialmente escritos para o hinário dos Wesleys. Resumindo, tudo era usado para levar as pessoas a Cristo […]. É bom dizer que durante cerca de 100 anos os hinos circulavam apenas nas igrejas dos não-conformistas” [7]

Os irmãos João e Carlos Wesley faziam parte da igreja dos não conformistas – igrejas e líderes que não concordavam com o clericalismo da igreja anglicana tinham uma liturgia livre diferentemente da liturgia anglicana, daí serem conhecidos também como “baixo clero”.

“João Wesley assim termina seu tributo póstumo ao irmão Carlos na conferência Metodista de 1788: ‘Não menos digno de louvor foi seu talento poético: O próprio Dr. Isaac Watts não teve dúvidas ao dizer que, este único poema, a luta de Jacó valeu por todos os versos que ele escreveu”, referindo-se ao poema “ó vem, caminhante, meu desconhecido” [8].

E assim, existem muito mais coisas a serem pesquisadas na história da hinódia da igreja.

Sobre o Autor

Pastor João Antonio de Souza Filho é pastor, conferencista, tradutor e escritor de diversos livros na área de louvor e adoração. Autor da canção Eu te louvarei senhor, de todo o meu coração. Cantada até hoje pela igreja brasileira.


[1] McCUTCHAN, Robert Guy, Hymns in the Lives of Men, pp. 62,63, Abingdon-Cokesbury Press, 1943

[2] SCHAFF, Philip, History of the Christian Church, Vol. 7 p 244.

[3] Ibid, p 245

[4] McCUTCHAN, Robert Guy, citando Miles Coverdale, Goostly Psalms and Spiritualle Songes, 1539

[5] McCUTCHAN, Robert Guy, citando Miles Coverdale, Goostly Psalms and Spiritualle Songes, 1539 em Hymms In The Lifes of Man, Abingdon-Cokesbury Press, 1943 – pp 121-22.

[6] MAcCUTCHAN, Robert Guy, citando Miles Coverdale, Goostly Psalms and Spiritualle Songes, 1539 em Hymms In The Lifes of Man, Abingdon-Cokesbury Press, 1943 – pp 121-22.

[7] McCUTCHAN, p 147

[8] MONTEIRO, Simei, Mil Vozes Para Celebrar, Angular p 320.